quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

"O que me espanta é a rapidez do tempo – a ligeireza com que os dias voam depois que passamos dos 40", diz o gênio, que passou a duvidar de si

O cartunista Laerte, com 40 anos de carreira e 59 de idade, lança “Muchacha”, coletânea de quadrinhos sobre os bastidores de uma série televisiva. No livro, um dos personagens, Djalma, se veste de mulher – comportamento que o próprio ilustrador vem adotando desde 2009 como reflexo de uma crise pessoal e profissional.
Em seu trabalho, desde 2002 Laerte vem desafiando a média de seus fãs e críticos com quadrinhos absolutamente diferentes dos que engedrou nas últimas três décadas em jornais diários – tanto que alguns resolveram dispensá-lo, segundo revelou o próprio Laerte na entrevista que segue e na qual pela primeira vez falou da perda de seu filho e de como a dor daí derivada foi sim a responsável pela reviravolta em seu trabalho. Leia abaixo trechos da entrevista que ele concedeu à revista Bravo!

Você costuma esquecer compromissos?
Laerte Coutinho: Não, não costumo. É verdade que, às vezes, me desligo um pouco da Terra e vou para o mundo da Lua. Mas, em geral, me julgo um camarada bem responsável.

Então por que você se esqueceu do nosso encontro? Tem ideia?
Sinceramente? Freud explica. Freud sempre explica. Na realidade, não queria dar entrevista. Estou me obrigando. Atravesso um período nebuloso, sabe? Uma crise gigantesca, tanto pessoal como profissionalmente. Não ando satisfeito com minhas criações e não imagino um modo de torná-las satisfatórias no curto ou no médio prazo. Talvez nem mesmo no longo. Uma sinuca de bico. Falar sobre minhas ilustrações, meus cartuns e minhas tiras neste momento me incomoda muito. É reivindicar importância para algo que já não avalio como tão relevante. Hoje não acredito que possa despertar o interesse de alguém. Sinto vergonha de quase tudo o que produzi em 40 anos de carreira. Gostaria de consertar a maioria das coisas.

Vergonha? A palavra me soa forte demais, entre outras razões, porque você ganhou inúmeros prêmios e porque diversos cartunistas, incluindo os jovens, frequentemente o classificam de genial.
O problema é que não me convenço. (risos) Genial? Considerava-me gênio quando adolescente. “Uma hora o mundo vai me descobrir”, pensava, enquanto rabiscava carros, barcos, guerreiros. Tremenda bobagem. Claro que enxergo qualidades no que fiz e no que faço. Longe de mim bancar o coitadinho ou apelar para a falsa modéstia. Só que tais qualidades não chegam nem perto das que me atribuem. Eu não me contrataria. (risos) Na década de 1980, por exemplo, participei do Festival Internacional de Quadrinhos em Angoulême (sudoeste da França). Fui representar o Brasil com o Ziraldo e mais alguns colegas. Assim que desembarquei na cidade, bateu um desconforto horrível. Tive ímpetos de cavar um buraco e sumir. Os franceses, que publicam HQs sofisticadérrimas, maravilhosas, simplesmente nos desprezaram – ainda que de maneira diplomática. Eles examinavam as nossas produções, arrebitavam o nariz e comentavam: “Curioso, curioso”. Aquilo me pareceu uma baita injustiça contra o Ziraldo e o resto da turma, mas não em relação às charges que levei para lá. Confesso que adoraria adorar a minha profissão. Adoraria ser como o Angeli, que desenha com um amor imenso. Ou como o Robert Crumb, que desenha compulsivamente. Ou como o Paulo Caruso, que desenha com uma facilidade assombrosa.

Você não vê mais graça em desenhar?
Praticamente não vejo. Desenhar se tornou penoso, difícil. Mal começo um trabalho, percebo que estou me dedicando àquela tarefa apenas porque necessito cumprir prazos ou pelo simples fato de que já a incorporei no meu cotidiano. Fugir da burocracia virou o xis da questão. Descobrir rumos novos, prazeres diferentes. Há tardes em que travo e fico horas sem arriscar um mísero esboço, inteiramente refém da autocrítica. Não me agradam os motes que escolho para as tirinhas, o desenvolvimento das tramas, a redação dos textos, o jeito como lido com as cores, a plasticidade do meu traço. Por outro lado, também não me agrada a perspectiva de largar tudo e me refugiar numa ilha deserta, folgadão. Não pretendo me aposentar. O que desejo é me reinventar.

Quando a crise eclodiu?
As primeiras insatisfações surgiram em 2001 ou 2002, no vácuo de uma tempestade maior que causara o fim do meu terceiro e último casamento. Pouco depois, em 2004, o incômodo cresceu e resolvi abdicar de vários elementos que marcavam minha trajetória. Abandonei personagens famosos, como o Overman, os Gatos e os Piratas do Tietê, certo tipo de humor, menos sutil, e a preocupação com a linearidade das histórias. Iniciei, ali, uma fase mais filosófica, que muitos intitulam de nonsense e que ainda me caracteriza. Uma parcela dos jornais que divulgavam os meus quadrinhos estranhou a reviravolta e acabou me dispensando – caso do gaúcho “Zero Hora” e do capixaba “A Tribuna”. Reclamavam de um hermetismo excessivo, de uma obscuridade que atrapalharia a fruição do público. Evidente que não concordo. Rejeito, inclusive, o adjetivo nonsense para definir o meu trabalho. Nonsense pressupõe o caos, a ausência total de significado. Ocorre que minhas tiras buscam, sim, um sentido – mesmo que seja o de aplicar um golpe na lógica, o de implodir o senso comum. Discussões semânticas à parte, noto que a trilha inaugurada em 2004 vai se fechando. Preciso, no fundo, me reconectar com o adolescente atrevido que, 45 anos atrás, ingressou num curso livre de desenho e pintura doido para se expressar. Preciso reencontrar a chave daquela inquietação, daquele frescor, daquela ousadia.

Envelhecer o deprime?
Não, mas me assusta. Nunca almejei a longevidade e sempre achei que morreria cedo. Por isso, não me angustio quando lembro que completarei 60 anos em 2011. Penso que dei sorte, que estou no lucro. (risos) O que me espanta é a rapidez do tempo – a ligeireza com que os dias voam depois que passamos dos 40. Uma rapidez estonteante, que se associa à falta de produtividade. Para um garoto, 12 meses fazem uma diferença brutal. Quantas coisas se modificam num intervalo tão pequeno! Já para um cinquentão, 12 meses normalmente não representam nada. Tudo permanece idêntico.

Recém-lançada, a coletânea “Muchacha” leva o nome da cantora e dançarina que o ator gay Djalma interpreta na trama. Ele se traveste. Você, à semelhança de Djalma, está usando brincos e um corte de cabelo bem femininos. Também aprecia o guarda-roupa das mulheres?
Também. É uma descoberta nova, uma predileção que se insinua há séculos, mas que se manifestou com todas as letras apenas em 2009. Cinco anos antes, um dos meus personagens, o Hugo, decidiu “se montar”. Não sei exatamente por quê. Só sei que, de uma hora para outra, arranjou vestido, batom, salto alto e se jogou no mundo. Desde que nasceu, o Hugo se porta como um alter ego do Laerte. Ele costuma assumir nos quadrinhos grilos e desejos que se confundem com os meus. O fato de imitar o visual das mulheres certamente denunciava algo sobre mim – sobre ambições que eu me negava a explorar às claras. Foi quando recebi o e-mail de uma arquiteta, fã do Hugo. Quer dizer: de um arquiteto que abraçou a identidade feminina. O sujeito me perguntava se ouvira falar dos crossdressers, pessoas que gostam de botar roupas ou adereços do sexo oposto. Na época, não dei muita bola. Mas em 2009, por causa do aguçamento de minhas neuras existenciais, procurei um clube de crossdressers, frequentei reuniões organizadas pelo grupo e li a respeito do assunto. Depois, lentamente, agreguei enfeites femininos à indumentária masculina – brincos, colares, unhas pintadas. Hoje, dependendo da ocasião, me visto como mulher dos pés à cabeça, mesmo em lugares públicos, onde acabo passando despercebido. Outras vezes, ponho somente uma bijuteria, um esmalte. De início, meus filhos, minha namorada e meus amigos chiaram. Agora, já se acostumaram. Ou quase. (risos)

O que você sente quando se traveste?
Um prazer indescritível, que nunca cogitei sentir. Recorrendo à prática, não planejo mudar de gênero definitivamente nem colocar em xeque a minha bissexualidade. O crossdressing, no meu caso, se refere menos à atividade sexual e mais à transposição de limites. É uma necessidade imperiosa de perscrutar e vivenciar os códigos femininos. Há ocidentais que se deleitam em investigar o Oriente. Experimentam comidas exóticas, fazem ioga, visitam a China. Da mesma maneira, por que um homem não pode empreender uma viagem radical pelo planeta insondável das mulheres?


Em 2005, você perdeu um de seus três filhos num acidente de carro. A crise atual tem alguma relação com a morte dele?
Creio que sim. O desaparecimento repentino do Diogo, aos 22 anos, me abalou terrivelmente. Fiquei um mês mergulhado na absoluta incapacidade de desenhar. Quando retomei o trabalho, as dúvidas que me conduziram à guinada conceitual de 2004 recrudesceram. O entendimento de que um ciclo terminara se mostrou claríssimo. Desde então, vivo sem bússola, um tanto desnorteado. Ou melhor: existe um norte, só que é um norte débil, inseguro, mutante. Uma vertigem contínua. A perda do Diogo retirou o véu de tudo. Relativizou ainda mais quaisquer certezas, desnudou as minhas fragilidades e, paradoxalmente, revelou as minhas forças – na medida em que toda fragilidade demanda uma força como resposta. Mas, na contramão do que parece, não extraí mensagens edificantes do episódio. A morte não nos traz lição nenhuma. É o desconhecimento pleno, um vazio que não se contenta com as justificativas da política, da sociologia, do direito, da psicanálise, da antropologia. Pegue o fim trágico do Glauco... (Glauco Villas Boas, cartunista e amigo de Laerte, assassinado em março junto do filho, Raoni, por um adepto da Igreja Céu de Maria). O que explica uma barbárie daquela? “Ah, como lideravam um culto religioso que ministra o santo-daime, Glauco e Raoni atraíram um punhado de malucos...” Será mesmo? Para mim, não importa! Nada esclarecerá o mistério de por que alguns partem do modo cruel como os dois partiram. Havia realmente necessidade daquilo? Daquele Armagedon doméstico? Do horror imensurável? Um pai presenciar a execução do próprio filho e depois morrer?
Armando Antenore Foto:Gabriel Rinaldi
http://bravonline.abril.com.br/conteudo/literatura/tenho-vergonha-quase-tudo-desenhei- laerte-600982.shtml

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